Quando o corpo atira primeiro: a passagem ao ato na adolescência
- Kaio Diniz
- há 16 horas
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“O momento da passagem ao ato é o do embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento. É então que, do lugar em que, como sujeito fundamentalmente historizado, só ele pode manter-se em seu status de sujeito, ele se precipita e despenca fora da cena. Essa é a própria estrutura da passagem ao ato.”
Lacan, Seminário X: A Angústia, 1962-1963
Há uma certa tranquilidade que se quer manter em torno da adolescência — como se fosse apenas um período de transição, uma fase do desenvolvimento, algo entre o ainda-não e o vir-a-ser. Mas há momentos em que essa calmaria, sustentada por teorias pedagógicas e discursos adaptativos, se desfaz por completo. É então que um ato irrompe, não como exceção, mas como denúncia da própria falência de um ideal de normalidade.
A série Adolescência, que causou incômodo e fascínio ao mostrar um jovem colegial assassinar uma colega de classe, não propõe respostas. E nisso está sua força: ao invés de conduzir o espectador a uma conclusão moral, ela o força a permanecer diante do insuportável, ali onde o discurso vacila.
Quando um sujeito mata, sobretudo nessa idade, aquilo que se pensava ser o processo natural do crescimento humano é confrontado por uma irrupção que escapa à narrativa. O gesto, por mais inaceitável que seja em sua forma, marca uma interrupção: algo no laço se rompe, e aquilo que era silenciado sob o manto da convivência emerge em seu estado bruto. Não é mais o comportamento desviante que está em questão, mas a estrutura mesma do laço que se mostra falho, excessivo, insustentável. É precisamente aí que se revela, de modo cru, a passagem ao ato na adolescência — não como exceção clínica, mas como efeito de um lugar simbólico que fracassa.

O que se observa não é uma falha do indivíduo em se integrar ao meio, mas uma falência do meio em oferecer ao sujeito um lugar possível. E quando esse lugar não se inscreve simbolicamente, o que resta é o recurso ao real: o ato, como substituto brutal do significante que não veio.
Não se trata de explicar o assassinato por causas externas — redes sociais, radicalizações, ausência paterna — mas de reconhecer que o sujeito é, em si mesmo, um ponto de tensão entre o desejo que não sabe nomear e os discursos que o atravessam. A adolescência, nesse sentido, não é uma transição: é um campo de embate. Entre o corpo que muda e o Outro que demanda, entre o gozo que invade e o sentido que falha, entre a solidão e o excesso de imagem.
É nesse intervalo que o sintoma se forma. Mas nem sempre ele se amarra ao discurso. Quando não há escuta, o sintoma se desfaz como formação e se revela como ruptura. Não há mais metáfora — há metonímia direta da pulsão no ato. O real sem furo.
O mais perturbador, talvez, não seja o crime em si, mas o modo como ele se inscreve. A frieza com que se realiza não é ausência de afeto, mas outra coisa: é o desamparo que se transforma em cálculo, o sofrimento que se organiza em cena, a dor que se encena no campo do Outro para que este, finalmente, se posicione.
A série, ao não oferecer alívio, acerta. Pois não há reparação possível quando o que se rompe é a própria possibilidade de nomear. Resta a constatação de que o horror não vem de fora. Ele está implicado no modo como cada um sustenta — ou não — o lugar que ocupa na linguagem. E quando esse lugar falha, o que emerge não é o erro, mas o impossível.
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